A Mulher de São Jorge
Taciano de Jesus Mattos
Para José Agrippino de Paula, o supercaos
Cabia o mundo em seus olhos castanhos, quase esverdeados, abrilhantados por todas as
estrelas dos sonhos mais infantis. Pelo retrovisor, avistava os faróis no engarrafamento
gigantesco. Soprava um vento gelado contra os vidros da janela do seu automóvel, fazendo
embaçar a visão, distorcer a realidade. Nada conseguia se mover em quilômetros no
abarrotar da rodovia. E o rádio tocava músicas antigas de amores desperdiçados, que a
fez recordar o quanto duro era seu coração. Seus dedos dos pés franziram, os pêlos
arrepiaram e o corpo ficou trêmulo. Deitou a cabeça sobre o volante e fraquejou no
arquear das sobrancelhas, que se alongou até as pálpebras, fazendo-a cair num adormecer
profundo, quase moribundo. Permaneceu por algum tempo naquela posição, sob o ronco
amortecido do motor, abafada por dezenas de buzinas raivosas. Quando acordou, sentiu a
boca amarga em enxofre, a pele seca e enrugada feito escama de peixe. De tão enfastiada e
atordoada, parecia que tinha hibernado por meses, anos, séculos... Confusa, olhou o
próprio reflexo através de um espelho no porta-batom. Gritou amedrontada, de pavor e
nojo! Virara um dragão, de cor avermelhado, com longas garras, asas enormes e dentes
afiados que se entrelaçavam a finos bigodes. Retorceu-se dentro do carro, assustada com
seu estado grotesco de besta, e arrancou as poltronas e abriu o teto com uma rajada de
fogo incandescente! Voou rumo a uma constelação distante para curar a ira de ter
perdido, na rotina das pequenas chateações, a meiguice encantada de mulher.
Taciano de Jesus Mattos (1984), é natural de Salvador - Bahia. Advogado,
escreve para o blog "Contextos" desde 2002.
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