Algo do tipo
Rebecca Albino
Semana passada, realizei um sonho de uma romântica escritora que a
tudo romantiza: fui a um antiquário aqui perto e comprei uma máquina
de escrever. Escolhi a mais capenga e o vendedor pareceu feliz em
despachar logo aquele caco velho quando a envolveu num jornal (?),
colocou dentro de várias grandes sacolas forradas por outras grandes
sacolas e me entregou. Ia perguntar sobre garantia, mas achei que
seria perca de tempo. Minha coluna meio torta e o suor brotando
debaixo do meu cabelo, carreguei-a pela rua. Ô coisinha pesada, viu?
Passei na papelaria para comprar tinta e papéis e canetas, várias
delas. Disse à moça do balcão que não precisava de outra sacola.
Segui adiante. Na esquina de casa uma padaria. Parei. Comprei um
maço de "Um raro prazer", pó de café, refrigerante, vodka e
biscoitos. Dessa vez dividi o peso. Segui. A próxima e última parada
seria apenas em casa.
Peguei minha máquina de escrever, capenga, tão velha quanto eu, e
coloquei em cima da mesa de madeira. Ajeitei-a de modo imperfeito.
Demorou um pouco até que eu pudesse atingir o torto-sutil perfeito,
que era minha meta. Fui na cozinha e comecei a preparar o café.
Enquanto ficava pronto, fui cuidar do resto. Peguei copos de geléia
e extratos de tomate, acendi vários cigarros e os deixei queimando
para que as cinzas caíssem dentro dos copos. Abri os blocos de
papel, coloquei um ou outro na máquina e comecei a digitar coisas
incoerentes, como esse texto. E daí tirava furiosamente a folha e
fazia bolas de papel que jogava por ali; alguns na cesta de lixo,
outros não. Fiz isso várias e várias vezes. Abri a garrafa de vodka
e a empurrei com a ponta do dedo, propositalmente. O líquido
escorreu pela madeira por uns segundos, quase um minuto — parece
pouco, mas foi quase a garrafa inteira, filho — e depois fui lá,
coloquei a garrafa em pé e coloquei folhas de papel por cima. A essa
altura os cigarros eram apenas cinzas, amassei as guimbas contra o
vidro e em seguida as deixei deitadas no fundo do copo. Achei que
não era suficiente, definitivamente um maço não era o bastante.
Peguei o elevador e comecei a bater nas portas. "Oi, você é fumante?
Não? Desculpe."; "Oi, você é fumante? É? Você pode me dar caixas
vazias? Espero sim, obrigado." Quando achei que vários olhares
confusos e que uma semana de comentários sobre minha pessoa já era
bom, voltei ao meu apartamento com mais ou menos seis maços vazios.
Coloquei dois em cima da mesa, mais três dentro do cesto e o resto
no chão. Parecia bom. Voltei minha atenção para o café que não
beberia. Peguei várias pequenas xícaras dentro do armário e dois
pratos grandes. Espalhei farelo em um dos pratos, tive que esfregar
um biscoito no outro para ter o maior número de farelo possível. Daí
peguei o outro prato e coloquei por cima — nesse eu coloquei os
biscoitos meio inteiros, meio defeituosos. Espalhei um pouco de
farelo pela mesa também. Peguei a jarra de café e comecei a dividir
o conteúdo entre as xícaras. Deixei-as lá, descansando, por uma hora
ou um pouco mais. Derramei um pouco de café nos pratinhos,
deixando-os meio manchados. Derramei também em cima da mesa e em
alguns papéis. O cheiro da bebida impregnou o recinto.
Corri pela casa. Espalhei livros novos, livros antigos, dicionários
de línguas que nem falava por tudo que era canto, principalmente na
mesa e em volta dela. Fiz uma pequena pilha ao lado do sofá com um
dos copo-cinzeros (?) para fazer companhia. Coloquei copo-cinzeros
no banheiro também. Eu sei que é estranho. Espalhei jornais e discos
de vinil também. Dei uma olhada e parecia bom. Só faltava mesmo uma
coisa. Peguei mais copos de extrato de tomate e os virei de cabeça
para baixo, deixando a base para cima. Acendi velas e as prendi no
fundo dos copos. Deixei-as queimar por um bom tempo, algumas
chegaram a ficar pela metade antes de apagá-las. As espalhei por
lugares estratégicos. Coloquei duas na mesa, perto da máquina de
escrever.
No final, peguei um copo de refrigerante e comi um biscoito enquanto
contemplava o que tinha feito com meu apartamento. Pronto. Agora
convenço qualquer um de que aqui mora uma escritora.
Qualquer um, menos eu.
Rebecca Albino
((1989) é carioca e estudante de Publicidade. Acrescenta: "...sem tattoo,
sem piercing, com dor de cabeça..." Apesar disso, ou por causa disso,
apresenta um aguçado senso de humor em seus escritos.
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