A arte de dedicar
Roberto Ambrosio
Bienal do Livro, São Paulo, muuuuitos anos atrás. Andei quilômetros e quilômetros
remexendo em prateleiras e lendo trechos que até hoje estão na minha memória. A
intenção era fazer valer os poucos trocados que eu tinha no bolso e comprar um ou dois
livros que valessem cem vezes aqueles cruzados (ou cruzeiros, novos ou velhos, não me
lembro).
Sempre a mesma procura daqueles que gostam de garimpar livros: pela maior emoção, pelo
texto perfeito que vai fazer você viajar, sofrer, sorrir, e mais que tudo, desejar ter
escrito aquilo.
Lá pelas tantas já estou com uma edição argentina da poesia completa do Borges,
subsidiada eu acho, porque custou um nadinha e era capa dura e papel daquele bem fino,
lindo o livro. Estava feliz com aquele tesouro nas mãos e estantes depois dou de cara com
um Marotta San Gennaro non dice mai no li um trecho (pensando bem gostaria
de tê-los colocado no papel, um por um, os trechos) e adorei a prosa mansa do italiano:
Il volto e l'anima di Napoli nel dramma amaro del dopoguerra. Anna Magnani, Rosselini,
Paesá, e sotaques lá de casa dançaram em minha memória. Bateu uma saudade imensa do
que não vivi. Comprei.
Continuei caminhando, agora livre da possibilidade de possuir, tudo o que restava era
abrir volumes, levar um pouco do perfume, do conteúdo e da maciez do papel de cada um dos
volumes. Muito melhor até.
Foi então que aconteceu. Sentado num daqueles espaços cheios de divisórias vejo um
senhor fumando calmamente, olhando fixo para a fumaça que subia. Um velho suéter de lã
verde, uma boina sobre a mesa, pesados óculos de aros escuros. Reconheci. Reuni coragem,
cheguei perto e perguntei: "Desculpa....o Sr. é o Mario Quintana?". E abre-se
um sorriso enorme, infantil, surpreendente como uma explosão, tão inesperada que não
tive alternativa, depois do susto, senão deixar que a alegria me tomasse. Emocionante.
Foi um abrir de braços, mãos, olhares. Nos demos as mãos e conversamos um pouco.
Amenidades. Gosto muito de você, dos seus livros. Que bom. São seus. Gosto daquele verso
onde você diz que todos os guarda-chuvas perdidos foram parar nos anéis de Saturno.
Risos. E não foram? Gosto do seu sotaque. Obrigado. Comprou o meu livro? Putz! Ele olhava
para os dois volumes em minhas mãos como uma criança olha para um pacote na noite de
Natal. Como dizer a ele esse bendito não?
Arraamm...não...saiu sem vontade, sem força, pra falar a verdade eu...já ia emendar a
verdade, eu juro, sobre o trabalho noturno, a falta de grana, e todos os livros dele que
tinha em casa, de todas as viagens adolescentes que fizemos juntos pelos ares, pelos mares
e pelas palavras que às vezes eram como soluços.
A essa altura também me incomodava a infinitesimal probabilidade daquele encontro
insólito de um único leitor muito menos do que ele merecia e eu sem o
livro! Por que não pensei antes que havia Quintanas nas prateleiras?
Não tive tempo pra nada além desse pensar penoso e metralhado. O homem tirou-me
delicadamente das mãos o San Gennaro e abrindo com as pontas dos dedos mãos
longas demais pra seu corpo escreveu numa caligrafia linda: Mario Quintana, grifou
e logo abaixo: Vale como uma dedicatória que deveria ser para o Roberto nos
"Esconderijos" e em "Prosa & Verso". Não colocou a data,
sabíamos que seria um maravilhoso erro e uma brincadeira eterna. Devolveu-me o livro com
um sorriso e nos despedimos com pena.
Desci o pequeno degrau e ainda o acompanhei caminhando com as mãos para trás,
lentamente, olhando para o teto. Voltei de ônibus, lendo inúmeras vezes aquela
dedicatória e lembrando de seus poemas: caixas de música, cadáveres, ruas de pedra e
garoas. Jamais me separei desse livro. Jamais o li. Foi como se a dedicatória tivesse
provocado alguma alteração nas páginas seguintes, mas isso eu não sei explicar, sei
que o Marotta escritor entenderia.
Ontem eu vi com satisfação o Quintana na TV, numa entrevista antiga ao Otto Lara Rezende
(e junto aos dois, acreditem, estava a Bruna Lombardi, admiradora do Mario, jovem e
linda). Parece que sua morte o fez ficar ainda maior, ele que já havia escrito que
"tudo que sai impresso é epitáfio" e que decerto preferiria brinquedos a
fardões deve estar rindo muito ao se ver tão oficial, presente e importante.
A impressão que eu tenho ainda hoje é que ele era uma criança. Seus gestos, sorrisos e
movimentos eram inquietos e infantis, havia uma coisa que se movimentava dentro dele e que
movimentou algo em mim e foi através do olhar urgente, travesso e vivo, isso eu sei,
senti. Era como o olhar de um menino que descobre o bolo morno pela janela da cozinha,
como um passarinho que rapidamente pega uma migalha desse bolo e desaparece num barulho de
asas e papel de seda.
Só lendo pra crer.
(Dedicado ao Goethe e a todos que
puderam encontrar-se com o Quintana. E aos que brevemente o encontrarão em textos, sebos
e livros.)
Roberto Ambrosio (1955) é
empresário e facilitador de treinamento em grupos. Mora em São Paulo (SP).
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