Ela não soube amar...
Maria Clara Pitol
Morava em uma casa antiga, com o amarelo dos muros ainda mais
amarelado pelo tempo, a tintura descascada, as árvores quase mortas,
as folhas caídas pelo quintal denunciavam o descaso da dona da casa
pelo seu lar, a porta de madeira era antiga, não havia campainha,
quem chegasse deveria bater palmas para anunciar que estava ali. Mas
quem chegaria? Ninguém nunca ia visitá-la, nunca havia se casado,
não tinha irmãos, os pais faleceram em um acidente, perdera os
amigos com o tempo, a distância e as mudanças da vida. Assim, nem o
correio por lá passava, afinal quem não tem família ou amigos também
não tem de quem receber cartas.
Sua única companheira era a solidão. Mentira, a saudade também a
acompanhava. Recordações, lembranças, momentos guardados em cartas,
registrados em fotos, eternizados em palavras, presentes, livros,
discos e quadros. Tudo naquela casa era passado. Porque Alice só
sabia viver no passado, do que havia sido sua vida, de quem amara,
de quem perdera tão de repente, de tudo o que já sabia o final, sim,
Alice gostava do previsível, do palpável, de planejamentos e
acertos.
Alice nunca gostou de sonhar, sempre teve medo de tirar os pés do
chão, ir parar lá nas nuvens, e de repente cair. Ela foi uma criança
medrosa, não se arriscava em nenhum brinquedo, não sujava as roupas,
lavava as mãos, obedecia a mãe, o pai, a professora, e agüentou
todas as dores no dentista sem reclamar, comia legumes, só bebia
refrigerante aos fins de semana e fazia todos os deveres de casa.
Alice também foi uma adolescente comportada, quase não respondia os
pais, sentava na primeira carteira, tirava as melhores notas, tinha
poucos amigos, não gostava de festas, nem de beber, e era tão
tímida, foi a última entre as amigas a beijar, e morria de vergonha.
Gostava calada de um garoto, Vinícius, popular, rebelde, bonito, o
pior aluno da sala, mas cheio de carisma, sabia conquistar,
convencer e dominar. Nunca fora correspondida, aliás, ele nunca
soube da paixão secreta que ela nutria por ele. Talvez nem saiba
quem foi Alice, talvez nunca tenha reparado naquela garota loirinha,
magrinha e quieta, escondida atrás de um par de óculos, um uniforme
e as bochechas pintadas.
Quando saiu do segundo grau ingressou direto em uma Universidade,
onde continuou sendo a melhor aluna da sala, tirando as melhores
notas, não tendo amigos e não gostando de ser o que era. Alice era
sozinha, sempre fora sozinha, e que triste. A solidão lhe consumira
a alma, a transformara numa mulher fechada, perdida, cheia de
mágoas, de medos e tristezas. Ela até queria mudar, mas não sabia
como, não conseguia traçar um caminho diferente, não tinha idéia de
como arriscar, nem coragem.
Conheceu Lúcio, um rapaz nem bonito nem feio, nem triste nem alegre,
nem popular nem quieto, nem alto nem baixo, nem magro nem gordo, e
se apaixonou. Uma paixão comum por um homem comum, e que coisa boa!
Existe sentimento mais sincero do que aquele mais simples e mais
comum? É paixão que brota da alma, nasce de um olhar, de uma força
invisível, de gestos, vontades, palavras, enfim, simplesmente vem. É
claro que Alice teve medo, mas naquele momento ela viu sua chance de
mudar, de fazer de sua vida algo significante, de transformar sua
rotina em prazer, de sentir ao menos uma vez na vida felicidade. E
assim foi.
Juntos viveram os melhores dias, e os piores também, se amaram, se
desejaram, se completaram... Também se odiaram, se perderam, se
acharam. Foi um ano imprevisível, o único ano em que Alice soube
aproveitar, e conseguiu ser feliz.
Mas um dia, Alice acordou e teve medo, sentiu que havia perdido o
controle, sentiu-se sozinha, teve dúvidas e fugiu.
Fugiu pra bem longe, para uma cidade pequenina, onde comprou uma
bela casa pintada de amarela, com um lindo jardim, com flores e
frutos. Mobiliou todo o seu novo lar com móveis novos, e objetos
antigos, com fotografias e alguns quadros, vasos, porta-retratos,
castiçais, vitrola e discos. No seu quarto sobre a escrivaninha uma
caixa com cartas, bilhetes, cartões e saudades.
Nunca mais ela saiu de lá, nunca mais soube viver. Alice também não
soube amar, o amor a impediu , estranho não? Para ela nem tanto,
amor para Alice era sofrimento, e disso ela soube fugir, e voltou ao
que sempre foi: sozinha.
Sozinha no mundo, na sua própria casa, no seu mundo. Há pessoas que
nascem para serem sós, e Alice foi uma delas.
Corroída pelo tempo, pelo descaso que teve com ele, pela falta de
histórias, vivências e oportunidades, Alice acabou ali. Poderia ser
em tantos outros lugares, mas não, ela parou naquela poltrona
marrom, no canto de uma sala escura, de uma casa envelhecida, no
meio de seu vazio.
Maria Clara Pitol (1984),
é paulistana e cursa o quarto ano de Jornalismo na Universidade
Metodista de São Paulo. Apaixonada por literatura, afirma que lê desde
pequena, e pretendo nunca mais parar. Diz ela: “A cada dia descubro
novos mundos dentro de livros, e tento criar outros novos universos em
meus textos. São crônicas, contos e poesias. São sentimentos, idéias,
observações e olhares de uma jovem mulher em busca de uma chance de
fazer o que gosta: escrever.”
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