A alma da romiseta
José Antonio
Martino
Como eles eram sempre pontuais, já não marcávamos o final do nosso joguinho de biriba
pelo relógio, mas pelo horário em que começavam a gritaria e o quebra-quebra. Toda
noite era a mesma coisa. Nós, velhinhas do terceiro andar, começávamos a jogar por
volta das sete horas, após termos jantado a nutritiva canja de aipim que a Gertrudes
preparava com tanto esmero. Depois, sentávamos à mesa para jogar e falar mal do próximo
até a hora em que o marido retornava ao lar e as brigas recomeçavam. O jovem casal
morava no apartamento de cima ao nosso e penso que o distinto mancebo não deixava de ter
certa razão em ralhar com a esposa, porque todas nós sabíamos que ela costumava receber
muita visita masculina quando seu venerável marido se encontrava ausente, mas isso não
é da nossa conta.
O fato é que o moço chegava de suas farras toda noite meio bêbado e, após abrir a
porta do apartamento violentamente, gritava para todo prédio escutar:
Matilda, tô sentindo cheiro de homem!
Era quando recolhíamos nosso baralho e começávamos a nos despedir. Então vinham todos
aqueles nomes pouco elegantes para se dizer a uma dama e as portas batiam e as coisas
quebravam muito naturalmente até que um silêncio lascivo parecia dominar tudo e as
estrelas piscavam vermelhas no céu excitado.
A tal Matilda mantinha numa estante da sala um velho ferro de passar roupa, que funcionava
com brasas, creio que de aço ou mesmo de chumbo, pois o cujo era pesado como um diabo
gordo. Aparentemente, o ferro servia de vaso, pois ela lhe metia dentro umas plantinhas
murchas, mas o bibelô era menos enfeite do que arma. Quando o marido avançava furibundo
contra ela, a boa senhorinha apanhava o ferro e o atirava sobre seus cornos, mas fazia
isto com tamanha destreza e arte, que procurava sempre errar o alvo, pois o seu intuito
era apenas amedrontá-lo. Tinha boa pontaria e a mão tão adestrada, que muitas vezes o
ferro passava zunindo às orelhas do rapaz e em mais de uma oportunidade ele sentiu um
ventinho gelado lhe roçando a barba mal feita.
Um dia, porém, ela errou, ou melhor, acertou em cheio a testa do galhardo varão. O
marido só não foi a nocaute, porque era muito cabeça-dura, mas ficou possesso e,
cambaleando troncho de cólera,pegou a primeira coisa que achou ao alcance de sua raiva,
atirando-a contra a referida consorte que, por estar com sorte, não foi atingida. Eis o
que é se encontrar no lugar errado e na hora errada. O que ele apanhara assim às pressas
acabou sendo nada mais nada menos do que a infortunada Romiseta, uma velha tartaruga de
estimação, que a tudo assistia mui pacatamente, esperando apenas ganhar sua banana
diária para se recolher. Porém, a tragédia não parou aí. Quis o destino que a
malfadada tartaruga tivesse sua noite de albatroz. Ao se agachar, Matilda ainda pôde ver
a pobre Romiseta sair voando pela janela, mas certamente ela não viu a infeliz criatura
se espatifando no chão, como nós todas vimos, uma vez que estávamos bisbilhotando na
varanda. O miserando quelônio ainda tentou aprender a voar naqueles breves instantes,
agitando as perninhas desesperadamente feito asas improvisadas, mas pouco resultado
obteve, de maneira que aterrissou com a sutileza de um tijolo.
A boa notícia é que a bichinha não morreu. Levada às pressas a um veterinário, após
exames acurados com direito a raio X e tudo, o diagnóstico indicou que a velha Romiseta
havia fraturado internamente a carapaça e, se esta não fosse removida com urgência, a
tartaruga morreria em poucos dias, pois uma lasca de seu casco encontrava-se cravada em
suas costas feito um punhal. Comido de remorso, o marido não mediu esforços para lhe
salvar a vida e mandou vir do estrangeiro um americano, que são os maiores especialistas
nestas coisas de tirar o couro dos outros.
Alguns meses depois, encontrei Matilda na rua, levando Romiseta para um refrescante
passeio. Ao vê-la, confesso que melhor seria que a tartaruga tivesse morrido. Estava
esquisitíssima! Nosso cão foi lhe cheirar meio de soslaio, temeroso, perguntando-me que
diabos seria aquilo, se de comer ou de brincar. Na verdade, a velha Romiseta estava mais
para um sapo de pescoço comprido, com pele de lagartixa toda esticada e dorso de chiuaua
tosquiado com máquina zero. A bem dizer, lembrava também outra coisa, mas a minha
provecta idade e a boa educação já não me permitem comparações desse tipo. O certo
é que os olhinhos melancólicos da Romiseta pareciam dizer a todo instante:
Matem-me... matem-me...
Em suma, faltava-lhe a alma, que fora arrancada com sua carapaça. Tirem tudo destes
pobres animaizinhos, mas não lhe tirem o casco já dizia um antigo sábio toscano,
proprietário de famoso restaurante especializado em sopa de tartaruga.
Foi então que aconteceu. Durante longos dias, ela permanecera admirando o velho ferro
enferrujado, como se caraminholasse coisas que somente os cérebros dos quelônios podem
compreender. Tanto fez, que levou Matilda a exclamar:
Esta tartaruga está apaixonada pelo antigo ferro de passar roupa, que fora de
minha bisavó!
Não estava. Na primeira oportunidade que teve, Romiseta meteu-se dentro do ferro para
nunca mais dele sair. Enfim, sentia-se novamente uma tartaruga, espichando o pescoço
feliz pelo buraco que servia para dar saída à fumarada das brasas. Talvez corresse em
suas veias a mesma febre inexplicável que picava os cavaleiros medievais em suas
armaduras ou quem sabe Romiseta se sentisse como o próprio Davi no corpo de Golias.
Se pensam que vou terminar este conto dizendo que Romiseta virou uma canja pedaçuda,
enganam-se. Ela morreu mesmo foi esturricada, tentando fazer amor com um ferro elétrico,
que Matilda comprara numa liquidação.
José Antonio Martino é contista e romancista. Formado em Letras pela USP, possui
os seguintes livros inéditos: A Falência do Ser (romance), Memorial do Bruxo -
Conhecendo Machado de Assis (Biografia), Um Dia Talvez Esqueceremos (Contos), Manual do
Poeta Aprendiz (Teoria Poética). Em 2003, publicou seu primeiro romance, Histórias do
Fim do Mundo e, em 2008, teve seu livro A Noite Negra publicado pela prefeitura de Manaus,
após ter sido o vencedor do Prêmio Manaus de Literatura.
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