O caçador de estrangeirismos
Fernando Bueno
Mal assentaram praça em Santana do
Lavradio, os carrancudos sessenta anos do juiz de direito Tiburcino
Lopes já não foram gostando. Ao percorrer os primeiros metros da Rua
das Acácias, ele logo deu de cara com a mania do pessoalzinho da
cidade de botar nome estrangeiro em tudo quanto era estabelecimento,
público ou privado, arrumadinho ou avacalhado.
Em cada canto, só se viam placas, plaquetas e tabuletinhas com a
afrontosa misturação de letras alienígenas. Assim é que, sobre a
porta da mais reles serralheria, ia escrito “McArthur, The Iron Man”,
a sapataria era “Le Soulier Bleu”, comia-se no “La Belle Époque” ou
no “L’Innamorata Verona”, comprava-se no armarinho “El Torero”. No
comercinho santanense grassava um arrevesado linguístico de todas as
nacionalidades, até o sânscrito deu sua contribuiçãozinha, já que
também o bordel tinha o sugestivo nome de “Kama Sutra”. Mas as
meninas e seus predicativos eram genuinamente nacionais...
Aquilo foi um golpe traiçoeiro na boca do estômago da sensibilidade
patriótica do Dr. Tiburcino, formado que era na cátedra vernácula do
Prof. Alfredo Gusmão, a maior autoridade metonímica e prominalística
daqueles idos tempos. Bastou atravessar uma minúscula passagem de
madeira sobre o modesto riacho Vermelho e ver escrito “Pont Neuf”,
para o insigne magistrado quase ter um troço:
- Com que, então, esse povinho medíocre é metido a desrespeitador
das belezas imemoriais da Língua Pátria brasileira, a língua de
Camões e de Vieira! Deixa estar, que, para esse tipo de doença,
Tiburcino tem medicina.
Às margens lodosas do riacho, do alto de sua categoria de membro
vitalício da Academia Jatobense de Letras, o juiz, empunhando uma
invisível espada legalista, proclamou ali mesmo, sentencioso:
- Navegar é preciso, viver não é preciso!
A manhã seguinte só fez aumentar o furo no pisante do meirinho
Anacleto, encarregado de distribuir por toda a cidade uma circular
normativa de caráter judicial. Nela se ordenava a mudança de toda a
terminologia estrangeira no prazo de uma semana, a poder de multa
diária, custas processuais e até prisão, com direito a corretivo de
borracha.
O povo de Santana do Lavradio gostava muito de sofisticação
vocabular, mas gostava ainda mais de cumprir determinação
regulatória de ameaçar o bolso e avermelhar costado. Foi assim que
em poucos dias o idioma nacional estava ali bem-representado na
serralheria “Artuzinho Ferreira, Ferreiro”, na sapataria “O
Sapatão”, no botequim “Comido Ninguém Pode”, na casa de carnes “Deu
no Lombo”. Até Sueli Viçosa, proprietária da já mencionada casa de
tolerância, resolveu se ajustar à nova ordem: o bordel adquiriu o
nome de “Cama Sua”.
E o juiz Tiburcino Lopes pôde afinal dormir tranquilo nos braços
maternos da nacionalidade castiça.
Fernando Bueno mora em
Belo Horizonte e é funcionário público. Não tem trabalhos publicados.
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