No dia em que ele foi embora
Chana de Moura
Recordo-me claramente daquela madrugada. Eu já não pegava no sono há duas
noites, pouco dormia desde que descobrira o seu segredo. O que viria depois?
Levantou-se lentamente, calçou as botas sem preocupar-se em recolher os
pertences espalhados pela casa. Percebi que tentou ousar um sutil e
carinhoso toque em meu corpo. Em um seguinte gesto de mero carinho,
cobriu-me com a coberta. Sua redenção. Eu carregava a certeza de que não
estava partindo por não mais me desejar. Porém, nem toda certeza conforta o
coração da gente. Abriu a porta lentamente e por ali nunca mais voltou.
Nunca mais o vi. Nunca mais nos veríamos. Nunca mais nos vimos. Nunca mais.
Nunca. Permaneci em silêncio sôfrego presenciando a cena diante da escuridão
do quarto. Quando percebi sua distância, levantei e caminhei até a janela,
observei friamente seu vulto atravessar a rua lá embaixo, dotado de uma
pressa incomum, a pressa de se ir para lugar algum. Para se ir embora de si
mesmo, era uma fuga. Não cedi. Não cedi a ele, nem cedi à decepção, nem cedi
à eu mesma, enlouquecendo por dentro. Notei uma carta em cima de seu
travesseiro ainda aquecido por seu corpo quente, nenhuma dor ou rancor havia
em meu peito. Sem entender ao certo e sem apresentar resistência ao
acontecido, abri e iniciei a leitura daquele bilhete escrito a seu próprio
punho. A carta não indicava o destinatário e nem, sequer, o remetente,
poderia ser endereçada à qualquer pessoa. Porém, era endereçada, eu sabia, a
mim. E havia sido escrito através de suas mãos, através das mãos que eu
ainda posso recordar. Ele escreveu:
"Eu gosto de você. Meus 850 anos passaram a possuir algum resquício de
sentido desde o momento em que dirigi a palavra a você pela primeira vez.
Porque eu gostei de você desde aquele dia, desde o sempre, desde o nosso
sempre. Gosto de você e das suas mentiras. Na realidade, não sei ao certo se
aprecio mais aquilo que você forja ser ou sua devoção ao parecer ser este
outro alguém. Você é meu camaleão de rebeldia conformada a tombar somente
impérios já massacrados. Você. Gosto da sua fúria contida entre um beijo e
um abraço e entre a sua própria vontade. Gosto desse seu circo onde não há
alegria de palhaços, desse seu carnaval sem lantejoulas e samba, e gosto de
a ver quando dança sozinha na sala, pensando que não a estou observando, ao
som de música alguma. Seu dançar é um poema, meu amor. Mas meu gostar é
gélido.
Você possuí um bocado de sonhos possíveis, mas, ao menos, ainda sabe como
sonhar. Seu desejo maior é jamais parar de sonhar. Eu a conheço, um pouco.
Me convoca a imaginar. Você nasceu somente metade. Uma metade nascida para
que eu pudesse a completar. E a transbordar. Sua loucura é tão calculada, e
seu passo é quase sempre errôneo. Você nem tem tanta força nem tanta
alegria, mas você é aquilo que nasceu para ser. E com tamanha coragem, o é.
Eu nasci para ser, mas jamais batalhei em meu nome. Jamais me olhei perante
um espelho. Desisti. Como fiz inúmeras vezes antes, desisti. Desisti
imaginando que o coração se acalmaria aos poucos, com o passar dos séculos.
Quando o tempo se fez negro, você, que é fraca, alcançou a luz. Quando
despenquei ao fundo de um poço, eu, que sou forte, cruzei os braços e,
solitário, chorei.
Gosto porque você não é e nunca será uma rainha, uma condessa ou uma nobre
dama da sociedade. Eu gosto de você pois é, entre tantas, a mais mulher de
todas. A única que capaz de em mim chegar. Gosto de você por cada um de seus
encantadores defeitos que, de tanto amor, eu transformei em qualidades.
Gosto de você tanto quanto é preciso gostar para o poder chamar "amor". Eu
amo você tanto quanto se pode amar alguém que não a gente mesmo, e espero
que isso baste para você me entender agora.
Você está acordada ao meu lado neste exato momento, fingindo dormir. Olhos
arregalados percorrendo cada centímetro desta parede vazia. Está
terrivelmente assustada. Eu estou mais. Posso te ver, meu amor. A parede não
responderá suas perguntas, as nossas perguntas. Tampouco eu. Tampouco você.
Tampouco vida porque esta ditadora dispensa a explicação. Devemos aprender
por nós mesmos.
Gosto do jeito com o qual me olha, como se fosse eu todo o mistério sagrado
contido em seu infanto olhar. Não há nada de novo em mim, a não ser você que
será sempre meu futuro e meu passado de agora em diante.
Por quê? — Eu pergunto. Por quê? — Você pergunta.
Os homens são sempre covardes, agora chegou a minha vez. Por isso, vou
partir.
A vida agraciou-me com a força de poder suportar a eternidade de uma vida,
mas não concedeu-me a força de suportar a perda de um amor.
Eu não sei. Você não sabe. Nós não sabemos. Nunca saberemos."
Chana de Moura (1988) é nova e promissora escritora do Rio Grande do Sul. Tem trabalhos
publicados na Antologia de Novos Poetas Brasileiros (número 53), e
outros mais na Câmara Brasileira de Novos Escritores.
[ Voltar ]
RESPEITE OS
DIREITOS AUTORAIS E A PROPRIEDADE INTELECTUAL
Copyright © 1996 PROJETO RELEITURAS.
É proibida a venda ou reprodução de qualquer parte do conteúdo deste site. |