Toda saudade ?vil e v?/font>
Carlos Correia Santos
No abrir-se da porta, aquela imagem quase monocromática. Um longilíneo vestido preto,
trajando a palidez de uma flor-frágil. Toda a tradução da delicadeza cabível em uma
dama.
O carteiro, retido ?soleira, teve de deter o impulso de parecer idiota. Fora
simplesmente tomado de assalto pela beleza triste a sua frente.
A jovem mulher falou mais com os olhos do que com os lábios. E disse apenas:
Sim?...
Não... Por alguns segundos, o carteiro esqueceu-se do que havia decorado para falar:
Bom dia, senhora. Sou do serviço de posta restante, dos correios os olhos
nos olhos vagos da outra Tivemos um problema de extravio com uma correspondência
endereçada a esta residência. S?conseguimos detectar o erro h?pouco tempo. Na
verdade, depois de um ano. E, por se tratar de um lapso tão grave, designaram-me para
entregar pessoalmente a carta... ?que ela foi originalmente postada com a recomendação
de urgência os olhos nos olhos fugidios de sua interlocutora Aqui est?..
E um envelope amarelado dirigiu-se ?mulher vestida de preto.
Não foram mãos que tomaram para si a carta, mas puro vento. O olhar da dama-flor-frágil
recaiu no sobrescrito e seu corpo inteiro estremeceu, quase a fazendo cair.
A agilidade do carteiro, que rápido se adiantou para ampar?la, impediu uma queda.
Leve-me para dentro foi o pedido que ela fez como quem pede as últimas
coisas da vida.
O carteiro teve de carreg?la. Um feminino hálito quente dedilhando seu queixo, enquanto
invadia aquela estranha casa escura, levando nos braços uma dama delgada e frágil. E
tudo o levou a uma sala onde nada mais havia que uma cadeira de balanço e um pequeno
banco, postos um em frente ao outro.
Acomodou a anfitri?na primeira e tomou a liberdade de se instalar no segundo.
Desfeita em seu assento, parecendo respirar s?o suficiente para ainda existir, a mulher
murmurou:
Esta carta ?de meu marido.
O carteiro não teve tempo de falar nada. A outra continuou a sussurrar, encarando o pobre
empregado dos correios como se lhe tivesse ódio:
Eu o enterrei ontem, voc?entende? Ele morreu e eu o enterrei ontem.
Santo Deus... um engolir em seco Sinto muito. Acredite: sinto muito
mesmo.
Ela estendeu a correspondência de volta ao carteiro.
Tome. Abra e leia para mim.
"O que?!" Exatamente assim o outro exclamou:
O que?
O retorno veio entre dentes, num tom explicitamente imperativo:
Abra e leia para mim.
Não foram mãos que reouveram a correspondência, mas puro tremor. O carteiro hesitou em
abrir aquele envelope amarelado. A ordem, porém, ainda lhe ecoava nos ouvidos. Destruiu,
por fim, o lacre, retirou um papel dobrado em quatro. Desdobrou-o devagar. Houve cheiro de
sândalo em volta.
Leia... ciciou a viúva. Um tom surpreendentemente lascivo. Ela sabia
perfeitamente o que estava para ser lido.
E o carteiro iniciou uma leitura lenta:
Minha amada flor-frágil... Continuo de onde parei na última carta. Continuo
daquele ponto estranho e tão querido: meus desejos. Eu escreveria todas as cartas do
tempo para discorrer sobre o desejo que escorre por mim...
O carteiro parou de repente. Fez ar de quem achava aquilo tudo absurdo.
E a viúva, quase num arfar:
Leia...
Ele prosseguiu:
O desejo que escorre por mim feito suor. O que molha em mim este suor? Para onde
escorrem essas gotas? Escorrer?por que reentrâncias minhas?... Tu sabes o que em mim se
umedece. Tu sabes muito bem que suo por ti. Por causa dessa tua perturbadora e simples
lembrança. De ti talhada nesse teu corpo. Tu sabes... Tu sabes que escrevo essa carta nu!
Um grunhido da viúva, um olhar quente do carteiro.
Deitado na cama, o travesseiro por apoio, escrevo nu. Flamejado pela visão que
guardo nas retinas. A visão da tua nudez o olhar correu pelo vestido preto, a sua
frente. Tecido denso sobre um busto que subia e descia numa respiração desmedida. Tecido
que subia at?o pescoço de sua dona e descia ventre abaixo, cobrindo tudo miseravelmente
Tudo da tua nudez eu conheço. Mas ?como se eu não conhecesse nada, pois quero
sempre admir?la qual fosse pela primeira vez. Admirar o que s?eu sei. Pois s?de mim
sabe o arrepio dos teus poros...
A viúva levou a mão ao pescoço. Parecia sufocada. Os dedos desceram pelo colo, fugiram
pelos seios, caíram pelo ventre, indo embora...
S?de mim sabem os teus seios, o teu ventre, as tuas virilhas... Um mirar
que ia da carta ?viúva, num frenesi quente Tenho saudade do teu mistério. Do
mistério que s?eu rocei. Mas toda saudade ?vil e v? Pois não posso passar a
língua na saudade. Não posso saciar minhas carnes com a saudade. Porque a saudade não
me traz gozo.
A viúva uma lágrima resvalando pela face ergueu-se de repente.
Aproximou-se do carteiro, arrancou-lhe a carta das mãos e determinou:
Quero que voc?mate a saudade que sente meu marido morto.
E num instante elétrico, ela se retirou avidamente do vestido preto que a prendia.
Pôs-se nua. O carteiro, fremindo, também foi ágil em livrar-se de suas roupas. Assim,
os dois se uniram. E o assoalho conheceu o peso e a ginga de seus corpos atados. Gemidos,
fúria, desatino...
Após o sexo, ainda no chão, desfeitos um sobre o outro... o casal ria de satisfação. E
coube a mulher confessar:
Voc?foi perfeito dessa vez.
O homem, totalmente alquebrado, gostou de escutar aquilo:
Fiz tudo direitinho?
A outra mordeu os lábios antes de responder:
Mais do que direitinho. Voc?parecia um autêntico carteiro assustado
gargalhadas E eu? Convenci como viúva?
Nossa! At?me deu vontade de morrer de verdade. Esse teu vestido preto faz a gente
sentir vontade de cometer suicídio.
Pervertido!
Eu, pervertido? A idéia de tudo isso foi tua!
Um ansioso beijo na boca. Sofreguidão unindo língua com língua
Vamos embora ordenou ela, regozijada com toda aquela loucura os donos
da casa podem chegar a qualquer momento!
Carlos Correia Santos?paraense, natural de Belém. Bacharel em
Direito, jornalista e produtor cultural, Amante da literatura, ?o idealizador,
coordenador e apresentador de vários projetos de incentivo ?leitura na região
amazônica, entre os quais se destacam: "Caf?com Verso e Prosa" (realizado em
Belém), "Caf?com Leituras" (realizado no município paraense de Castanhal) e
Estrada de Letras (realizado nos municípios paraenses de Paragominas, Marab? e
Santarém), e em Macap? capital do Amap?. Preside a ONG literária Cia.
Amazônica do Livro, tem trabalhos publicados e ganhou vários prêmios regionais. O texto
acima foi o vencedor do I Concurso Metropolitano de Literatura promovido pela Prefeitura
Municipal de Belém, em 2003.
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