O Cavalo que Bebia Cerveja
Guimarães Rosa
Essa chácara do homem ficava meio ocultada, escurecida
pelas árvores, que nunca se viu plantar tamanhas tantas em roda de uma casa. Era homem
estrangeiro. De minha mãe ouvi como, no ano da espanhola, ele chegou, acautelado e
espantado, para adquirir aquele lugar de todo defendimento; e a morada, donde de qualquer
janela alcançasse de vigiar a distância, mãos na espingarda; nesse tempo, não sendo
ainda tão gordo, de fazer nojo. Falavam que comia a quanta imundície: caramujo, at?
r? com as braçadas de alfaces, embebidas num balde de água. Ver, que almoçava e
jantava, da parte de fora, sentado na soleira da porta, o balde entre suas grossas pernas,
no chão, mais as alfaces; tirante que, a carne, essa, legítima de vaca, cozinhada.
Demais gastasse era com cerveja, que não bebia ?vista da gente. Eu passava por l? ele
me pedia: "Irivalíni, bisonha outra garrafa, ?para o cavalo..."
Não gosto de perguntar, não achava graça. Às vezes eu não trazia, às vezes trazia, e
ele me indenizava o dinheiro, me gratificando. Tudo nele me dava raiva. Não aprendia a
referir meu nome direito. Desfeita ou ofensa, não sou o de perdoar a nenhum de
nenhuma.
Minha mãe e eu sendo das poucas pessoas que atravessávamos por diante da porteira, para
pegar a pinguela do riacho. "Dei'st? coitado, penou na guerra..."
minha mãe explicando. Ele se rodeava de diversos cachorros, graúdos, para
vigiarem a chácara. De um, mesmo não gostasse, a gente via, o bicho em sustos,
antipático o menos bem tratado; e que fazia, ainda assim, por não se arredar de
ao p?dele, estava, a toda a hora, de desprezo, chamando o endiabrado do cão: por nome
"Mussulino". Eu remoia o rancor: de que, um homem desses, cogotudo, panturro,
rouco de catarros, estrangeiro às náuseas se era justo que possuísse o dinheiro
e estado, vindo comprar terra crist? sem honrar a pobreza dos outros, e encomendando
dúzias de cerveja, para pronunciar a feia fala. Cerveja? Pelo fato, tivesse seus cavalos,
os quatro ou três, sempre descansados, neles não amontava, nem agüentasse montar. Nem
caminhar, quase, não conseguia. Cabrão! Parava pitando, uns charutos pequenos,
catinguentos, muito mascados e babados. Merecia um bom corrigimento. Sujeito sistemático,
com sua casa fechada, pensasse que todo o mundo era ladrão.
Isto ? minha mãe ele estimava, tratava com as benevolências. Comigo, não adiantava
não dispunha de minha ira. Nem quando minha mãe grave adoeceu, e ele ofertou
dinheiro, para os remédios. Aceitei; quem ?que vive de não? Mas não agradeci. Decerto
ele tinha remorso, de ser estrangeiro e rico. E, mesmo, não adiantou, a santa de minha
mãe se foi para as escuridões, o danado do homem se dando de pagar o enterro. Depois,
indagou se eu queria vir trabalhar para ele. Sofismei, o qu? Sabia que sou sem temor, em
meus altos, e que enfrento uns e outros, no lugar a gente pouco me encarava. S?se fosse
para ter a minha proteção, dia e noite, contra os issos e vindiços. Tanto, que não me
deu nem meio serviço por cumprir, senão que eu era para burliquear por l? contanto que
com as armas. Mas, as compras para ele, eu fazia. "Cerveja, Irivalíni. ?
para o cavalo..." o que dizia, a sério, naquela língua de bater ovos. Tomara
ele me xingasse! Aquele homem ainda havia de me ver.
Do que mais estranhei, foram esses encobrimentos. Na casa, grande, antiga, trancada de
noite e de dia, não se entrava; nem para comer, nem para cozinhar. Tudo se passava da
banda de c?das portas. Ele mesmo, figuro que raras vezes por l?se introduzia, a não
ser para dormir, ou para guardar a cerveja ah, ah, ah a que era para o
cavalo. E eu, comigo: "Tu espera, porco, para se, mais dia menos dia, eu não
estou bem a? no haja o que h?" Seja que, por essa altura, eu devia ter procurado
as corretas pessoas, narrar os absurdos, pedindo providências, soprar minhas dúvidas. O
que fácil não fiz. Sou de nem palavras. Mas, por a? também, apareceram aqueles
os de fora.
Sonsos os dois homens, vindos da capital. Quem para eles me chamou, foi o seo Priscílio,
subdelegado. Me disse: "Reivalino Belarmino, estes aqui são de autoridade,
por ponto de confiança." E os de fora, me pegando ?parte, puxaram por mim, às
muitas perguntas. Tudo, para tirar tradição do homem, queriam saber, em pautas
ninharias. Tolerei que sim; mas nada não fornecendo. Quem sou eu, quati, para cachorro me
latir? S?cismei escrúpulos, pelas más caras desses, sujeitos embuçados, salafrados
também. Mas, me pagaram, o bom quanto. O principal deles dois, o de mão no queixo, me
encarregou: que, meu patrão, sendo homem muito perigoso, se ele vivia mesmo sozinho? E
que eu reparasse, na primeira ocasião, se ele não tinha numa perna, embaixo, sinal velho
de coleira, argolão de ferro, de criminoso fugido de prisão. Pois sim, piei prometi.
Perigoso, para mim? ah, ah. Pelo que, v? em sua mocidade, podendo ter sido homem.
Mas, agora, em pança, regalão, remanchão, somente quisesse a cerveja para o
cavalo. Desgraçado, dele. Não que eu me queixasse, por mim, que nunca apreciei cerveja;
gostasse, comprava, bebia, ou pedia, ele mesmo me dava. Ele falava que também não
gostava, não. De verdade. Consumia s?a quantidade de alfaces, com carne, boquicheio,
enjooso, mediante muito azeite, lambia que espumava. Por derradeiro, estava meio
estramontado, soubesse da vinda dos de fora? Marca de escravo em perna dele, não
observei, nem fiz por isso. Sou l?serviçal de meirinho-mor, desses, excogitados, de
tantos visares? Mas eu queria jeito de entender, nem que por uma fresta, aquela casa,
debaixo de chaves, espreitada. Os cachorros j?estando mansos amigáveis. Mas, parece que
seo Giovânio desconfiou. Pois, por minha hora de surpresa, me chamou, abriu a porta. L?
dentro, at?fedia a coisa sempre em tampa, não dava bom ar. A sala, grande, vazia de
qualquer amobiliado, s?para espaços. Ele, nem que de propósito, me deixou olhar ?
minha conta, andou comigo, por diversos cômodos, me satisfiz. Ah, mas, depois, c?
comigo, ganhei conselho, ao fim da idéia: e os quartos? Havia muitos desses, eu não
tinha entrado em todos, resguardados. Por detrás de alguma daquelas portas, pressenti
bafo de presença s?mais tarde? Ah, o carcamano queria se birbar de esperto; e eu
não era mais?
Demais que, uns dias depois, se soube de ouvidos, tarde da noite, diferentes vezes,
galopes no ermo da várzea, de cavaleiro saído da porteira da chácara. Pudesse ser?
Então, o homem tanto me enganava, de formar uma fantasmagoria, de lobisomem. S?aquela
divagação, que eu não acabava de entender, para dar razão de alguma coisa: se ele
tivesse, mesmo, um estranho cavalo, sempre escondido ali dentro, no escuro da casa?
Seo Priscílio me chamou, justo, outra vez, naquela semana. Os de fora estavam l? de
colondria, s?entrei a meio na conversa; um deles dois, escutei que trabalhava para o
"Consulado". Mas contei tudo, ou tanto, por vingança, com muito caso. Os de
fora, então, instaram com seo Priscílio. Eles queriam permanecer no oculto, seo
Priscílio devia de ir sozinho. Mais me pagaram.
Eu estava por ali, fingindo não ser nem saber, de mão-posta. Seo Priscílio apareceu,
falou com seo Giovânio: se que estórias seriam aquelas, de um cavalo beber cerveja?
Apurava com ele, apertava. Seo Giovânio permanecia muito cansado, sacudia devagar a
cabeça, fungando o escorrido do nariz, at?o toco do charuto; mas não fez mau rosto ao
outro. Passou muito a mão na testa: "Lei, guer ver?" Saiu, para surgir
com um cesto com as garrafas cheias, e uma gamela, nela despejou tudo, às espumas. Me
mandou buscar o cavalo: o alazão canela-clara, bela-face. O qual era de se dar a
f? j?avançou, avispado, de atreitas orelhas, arredondando as ventas, se
lambendo: e grosso bebeu o rumor daquilo, gostado, at?o fundo; a gente vendo que ele j?
era manhudo, cevado naquilo! Quando era que tinha sido ensinado, possível? Pois, o cavalo
ainda queria mais e mais cerveja. Seo Priscílio se vexava, no que agradeceu e se foi. Meu
patrão assoviou de esguicho, olhou para mim: "Irivalíni, que estes tempos vão
cambiando mal. Não laxa as armas!" Aprovei. Sorri de que ele tivesse as todas manhas
e patranhas. Mesmo assim, meio me desgostava.
Sobre o tanto, quando os de fora tornaram a vir, eu falei, o que eu especulava: que alguma
outra razão devia de haver, nos quartos da casa. Seo Priscílio, dessa vez, veio com um
soldado. S?pronunciou: que queria revistar os cômodos, pela justiça! Seo Giovânio, em
p?de paz, acendeu outro charuto, ele estava sempre cordo. Abriu a casa, para seo
Priscílio entrar, o soldado; eu, também. Os quartos? Foi direto a um, que estava duro de
trancado. O do pasmoso: que, ali dentro, enorme, s?tinha o singular isto ? a
coisa a não existir! um cavalão branco, empalhado. Tão perfeito, a cara
quadrada, que nem um de brinquedo, de menino; reclaro, branquinho, limpo, crinado e
ancudo, alto feito um de igreja cavalo de São Jorge. Como podiam ter trazido
aquilo, ou mandado vir, e entrado ali acondicionado? Seo Priscílio se desenxaviu, sobre
toda a admiração. Apalpou ainda o cavalo, muito, não achando nele oco nem contento. Seo
Giovânio, no que ficou sozinho comigo, mascou o charuto: "Irivalíni, pecado
que nós dois não gostemos de cerveja, hem?" Eu aprovei. Tive a vontade de contar a
ele o que por detrás estava se passando.
Seo Priscílio, e os de fora, estivessem agora purgados de curiosidades. Mas eu não
tirava o sentido disto: e os outros quartos, da casa, o atrás de portas? Deviam ter dado
a busca por inteiro, nela, de uma vez. Seja que eu não ia lembrar esse rumo a eles, não
sou mestre de quinaus. Seo Giovânio conversava mais comigo, banzativo:
"Irivalíni, eco, a vida ?bruta, os homens são cativos..." Eu não queria
perguntar a respeito do cavalo branco, frioleiras, devia de ter sido o dele, na guerra, de
suma estimação. "Mas, Irivalíni, nós gostamos demais da vida..."
Queria que eu comesse com ele, mas o nariz dele pingava, o ranho daquele monco, fungando,
em mal assôo, e ele fedia a charuto, por todo lado. Coisa terrível, assistir aquele
homem, no não dizer suas lástimas. Sa? então, fui no seo Priscílio, falei: que eu
não queria saber de nada, daqueles, os de fora, de coscuvilho, nem jogar com o pau de
dois bicos! Se tornassem a vir, eu corria com eles, despauterava, escaramuçava
alto a? isto aqui ?Brasil, eles também eram estrangeiros. Sou para sacar faca
e arma. Seo Priscílio sabia. S?não soubesse das surpresas.
Sendo que foi de repente. Seo Giovânio abriu de em par a casa. Me chamou: na sala, no
meio do chão, jazia um corpo de homem, debaixo de lençol. "Josepe, meu
irmão"... - ele me disse, embargado. Quis o padre, quis o sino da igreja para
badalar as vezes dos três dobres, para o tristemente. Ninguém tinha sabido nunca o qual
irmão, o que se fechava escondido, em fuga da comunicação das pessoas. Aquele enterro
foi muito conceituado. Seo Giovânio pudesse se gabar, ante todos. S?que, antes, seo
Priscílio chegou, figuro que os de fora a ele tinham prometido dinheiro; exigiu que se
levantasse o lençol, para examinar. Mas, a? se viu s?o horror, de nós todos, com
caridade de olhos: o morto não tinha cara, a bem dizer s?um buracão, enorme,
cicatrizado antigo, medonho, sem nariz, sem faces a gente devassava alvos ossos, o
começo da goela, gargomilhos, golas. "Que esta ?a guerra..."
seu Giovânio explicou boca de bobo, que se esqueceu de fechar, toda doçuras.
Agora, eu queria tomar rumo, ir puxando, ali não me servia mais, na chácara estúrdia e
desditosa, com o escuro das árvores, tão em volta. Seo Giovânio estava da banda de
fora, conforme seu costume de tantos anos. Mais achacoso, envelhecido, subitamente, no
trespassamento da manifesta dor. Mas comia, sua carne, as cabeças de alfaces, no balde,
fungava. "Irivalíni... que esta vida... bisonha. Caspit?"
perguntava, em todo tom de canto. Ele avermelhadamente me olhava. "C?eu
pisco..." respondi. Não por nojo, não dei um abraço nele, por vergonha,
para não ter também as vistas lagrimadas. E, então, ele fez a mais extravagada coisa:
abriu cerveja, a que quanta se espumejasse. "Andamos, Irivalíni, contadino,
bambino?" propôs. Eu quis. Aos copos, aos vintes e trintas, eu ia por aquela
cerveja, toda. Sereno, ele me pediu para levar comigo, no ir-m'embora, o cavalo
alazão bebedor e aquele tristoso cachorro magro, Mussulino.
Não avistei mais o meu Patrão. Soube que ele morreu, quando em testamento deixou a
chácara para mim. Mandei erguer sepulturas, dizer as missas, por ele, pelo irmão, por
minha mãe. Mandei vender o lugar, mas, primeiro, cortarem abaixo as árvores, e enterrar
no campo o trem, que se achava, naquele referido quarto. L?nunca voltei. Não, que não
me esqueço daquele dado dia o que foi uma compaixão. Nós dois, e as muitas,
muitas garrafas, na hora cismei que um outro ainda vinha sobrevir, por detrás da gente,
também, por sua parte: o alazão façalvo; ou o branco enorme, de São Jorge; ou o
irmão, infeliz medonhamente. Ilusão, que foi, nenhum ali não estava. Eu, Reivalino
Belarmino, capisquei. Vim bebendo as garrafas todas, que restavam, faço que fui eu que
tomei consumida a cerveja toda daquela casa, para fecho de engano.
Texto extraído do livro "Primeiras Estórias", Editora Nova Fronteira - Rio
de Janeiro, 1988, pág. 83.
Tudo sobre o autor e sua obra em "Biografias".
|