Meditação no presépio
Cecília Meireles
Quando São Francisco de Assis inventou o primeiro presépio, e falou das coisas do céu
numa gruta, dizem que, ao ajoelhar-se, desceu-lhe aos braços estendidos um Menino todo de
luz. O Santo Poeta colocara ali apenas umas poucas imagens: as da Sagrada Família, a do
irmão jumento e a do irmão boi. O áspero cenário de pedra tinha a nudez franca da
pobreza, a rispidez dos desertos do mundo, o recorte bravio dos lugares de sofrimento.
A? o Menino de luz pode descer, porque ele vinha para ensinar caminhos difíceis, e
restituir às coisas naturais da terra o sentido da sua presença na ordem universal.
O amor humano ?um perigoso jogo. Por amor, os homens foram construindo presépios ao
longo do mundo, e j?não lhes bastava a pedra desguarnecida: queriam recobri-la do
ornamento da sua devoção. Trouxeram folhagens e flores, dispuseram frutos e pássaros,
desceram o céu, num pálio de seda azul, colheram as estrelas, dos ramos que se alongam
na noite. Caçaram a lua, no meio da sua viagem, e pescaram o sol, redondo peixe de
nadadeiras flamejantes.
Não lhes bastaram, porém, ainda, esse convite e essa conquista, no reino dos adornos da
natureza. Convocaram os habitantes do mundo para uma adoração geral. Trouxeram os
pastores, que deviam ser os vizinhos mais próximos da feliz manjedoura; trouxeram os
lavradores e os artífices, de acordo com as imaginárias relações da família do
recém-nascido.
Mas era preciso não esquecer os Profetas, anunciadores do acontecimento, e das ruas da
Bíblia os fizeram descer com suas barbas, seus cajados, suas visões e ainda cheios de
voz.
Os Reis vieram por si, de olhos postos na Estrela; e como os Reis traziam os camelos; e os
pastores, carneiros, também os Profetas arrastaram leões, e cabras sem defeito e
depois, em muita confusão, toda besta que remói, umas de unha fendida, outras não; e
at?os animais que caminham sobre o peito e os que têm muitos pés e ainda assim se
arrastam pelo chão.
E, puxados uns pelos outros, vieram o cavalo e a mula, o cão e o elefante, o macaco, a
hiena, o chacal e o leopardo, e o imundo crocodilo, com a cordilheira dos seus dentes, e a
lagosta abominável, sem escama nem barbatana.
Foi talvez a lagosta que açulou os apetites, e os nobres italianos, com aquela pompa que
o Renascimento lhes incutiu, trouxeram para os presépios a escamosa alcachofra e o
labiado repolho, e cachos de uvas e salsichas, e o queijo e a rosca e o vinho tudo
que o amor ama e, por amor, quer repartir.
E os Profetas trouxeram as Sibilas, e as Sibilas as Cassandras e as Medéias e as Circes,
e quem sabe at?onde o humano mar se iria aproximando de onda em onda, nessa
aglomeração sucessiva para adorar o Menino e ornamentar o Presépio. Homero traria seus
argonautas; o rei Artur, seus paladinos; Marco Polo, seus mercadores, Gengis-Khan seus
guerreiros e o negro, o chim, o índio emplumado e o friorento esquim?se
acomodariam todos sem dificuldade no recinto mágico presidido por um pobre Menino
celestial.
E tão bem se sentiriam que, sem desejo de regresso, iriam buscar suas casas e suas
montanhas, seus rios e seus moinhos, seus arados e seus fornos, suas embarcações e suas
tendas, e ali se poriam a trabalhar, ao som de doces cânticos ali mesmo inventados, e ali
bailariam, com gaitas e sanfonas, adufes e harpas, ocarinas e violas e tudo quanto, com
metal, corda ou sopro, ?capaz de produzir um som de feitura harmoniosa, comparável ao
gorjeio das aves, ao suspiro das águas, ao adejar do vento e ?voz humana quando quer
ser mais que linguagem.
E o sol e a lua e as estrelas ainda pareceram apagados, para tão ambiciosa festa, e as
mulheres e as moças puseram-se a dançar com círios acesos nas mãos, e tudo foi
recamado de ouro em p? e cada qual começou a escolher trajos mais cintilantes, de
cetins mais lustrosos, com lavores mais ricos, e do mar e da terra se desentranharam todas
as coisas que brilham e deslumbram, e não houve príncipe nem sacerdote nem mercador nem
escravo que não gastasse os olhos e as pontas dos dedos, cosendo em seus estofos as gemas
que os tornassem mais resplandecentes.
E nesse esplendor de fitas e rendas, de colares e anéis, com os animais de chifres
dourados, de testa empenachada, de manto lavrado e guarnições de fina cinzelura, at?se
recordou que o Menino não podia estar ali despido como simples deus humanado e
teceram-lhe camisinhas e envolveram-no em brancas sedas, e para a tímida Virgem e o
submisso carpinteiro trouxeram finas roupagens esmaltadas de cintos e fivelas, com barras
de arabescos e densas pregas faustosas.
E as belas canções subiam como, nas hastes gladioladas, abrem os lírios verticalmente,
de salto em salto.
E houve assim uma existência de amor, e alguém pensaria estar o mundo apaziguado, e a
família terrena compreendida e satisfeita, trabalhando e cantando, bailando e dormindo
tendo em redor de si a parede rústica do Presépio.
Mas, na verdade, a parede do Presépio deixara de existir. O que havia eram muitas
paredes, de palácios e de mosteiros, de chácaras e de cozinhas de quartéis e de
fábricas, de lojas e de manicômios.
Porque essa humanidade se arruinou e adoeceu; esqueceu-se que a oferenda não lhe
pertencia, e estendeu a mão para a alcachofra e para a lagosta, para o cavalo do
guerreiro e a coroa do suserano, e o que tocava cítara quis brandir espada, e o que
varria o estábulo apoderou-se da cítara.
De modo que se chegou a ver o legionário romano, de agulha e dedal, bordando flores sobre
cetim, e as dríades empunhando lanças, e os javalis sentados em cadeiras de ouro,
abanados por leques de plumas.
Ninguém mais podia amar a sua oferta, mas a do seu vizinho; e j?não amava com amor de
dar, mas com amor de possuir. E não houve mais quem se despojasse, mas s?quem
apreendesse.
Notou-se que o sol e a lua e as estrelas não tinham mais sua substância própria: eram
de ouro e de gemas, eram pintados e incrustados; não se moviam nem aqueciam mais.
Notou-se que os cantores tinham ficado melancólicos e a dança não se levantava em asas
tênues: arrastava caudas fúnebres, patas desconfiadas, pontas de espadas surdas.
E aquilo que foi um Presépio era um mundo de contradições, sem equilíbrio nem sentido.
Os Profetas eram
alucinados e as Sibilas, dementes; os Reis, uns conquistadores mesquinhos; os
guerreiros, uns assassinos convictos.
Nuvens de seda e p?de danças toldaram a íntima, pequena cena de um nascimento
sobrenatural. Tudo tinha ficado mais importante que o Menino chegado para ensinar o amor.
Tudo tinha formado sucessivos planos, anteriores uns aos outros, sobrepostos uns aos
outros, escondendo-se uns aos outros, num amontoado de riqueza, ambição, prepotência,
vaidade, cobiça, rapina, mentira, traição e ódio.
E tudo isso foi desabando por si mesmo, porque estava armado sem fundamento; e viram-se os
Profetas fugitivos, arrastando os animais santificados e os imundos; e as Sibilas
recolhiam seus oráculos perdidos, e as Medéias e as Circes enrolaram seus velhos
feitiços; e os que tinham vindo por engano choraram pelas palavras que tinham entendido;
e os que tinham vindo por verdadeiro amor deixaram pender a cabeça, e foram empurrados na
onda devastadora, porque o amor ?distraído e desatento de si, sem agressão nem defesa,
e fica sempre esmagado, no torvelinho dos atropelos.
Mas quando tudo ruir completamente, porque sempre chegam novos forasteiros ao
Presépio, e cada um se diz o único verídico, o mais sincero e o mais poderoso, o mais
rico e o mais fiel quando tudo ruir completamente, o Menino continuar?na sua
gruta, com a sua família humilde, o irmão boi e o irmão jumento, para recomeçarem a
vida, na simplicidade humana das coisas naturais e universais.
E se outro São Francisco se ajoelhar na gruta rústica, o Menino vir?todo em luz aos
seus braços, porque s?o Santo Poeta entendia dessa irmandade geral do céu e da terra,
e da graça de todos os despojamentos, e da alegria de não precisar ter, pela
contemplação de todos os enganos, e da leveza da vida em expressão absoluta.
(Rio de Janeiro, revista
Rio, Dezembro de 1946)
Texto extraído do livro Cecília Meireles - Obra em Prosa - Vol. 1, Ed.
Nova Fronteira - Rio de Janeiro, 1998, pág. 192.
Saiba tudo sobre a vida e a obra de Cecília Meireles visitando
"Biografias".
Leia o texto. Compre o livro.
|