História de uma letra
Cecília Meireles
Muita gente me pergunta se deixei de escrever o meu sobrenome com letra dobrada devido à
reforma ortográfica; e quando estou com preguiça de explicar, digo que sim. Mas hoje
tomo coragem, abalanço-me a confessar a verdade, que talvez não interesse senão aos
meus possíveis herdeiros.
A verdade nunca é simples, como se imagina. E em primeiro lugar, devo dizer que o meu
sobrenome simplificado só vale na literatura. Nos documentos oficiais prevalece a forma
antiga, e eu por mim gosto tanto da tradição que não me importava nada carregar um
ípsilon, um th, todas as atrapalhações possíveis que enrugam e encarquilham um idioma.
Por outro lado, as reformas ortográficas são sempre tão arrevesadas que já perdi as
esperanças de estar algum dia completamente em condições de escrever sem erros,
descansando assim no tipógrafo e no revisor, que são os grandes responsáveis pelas
nossas faltas e pelas nossas glórias. Não foi, portanto, por afeição às reformas que
sacrifiquei uma letra do meu nome. A história é mais inverossímil.
Todos na vida atravessamos certas crises. Dever-se-ia mesmo escrever sobre a gênese,
desenvolvimento, apogeu e fim das crises. Se uma pessoa está sem emprego, o natural é
que se empregue. Se está doente, o natural é que morra ou se cure. Mas o fenômeno da
crise é importante precisamente por ser o contrário do natural. De modo que se a pessoa
está desempregada, não há maneira de arranjar emprego, e se está doente não há
maneira de se curar, etc...
As crises são muito variadas. Há crises sentimentais, econômicas, de inspiração, de
talento, de prestígio e o povo classifica essa situação, que ele, em sua
sabedoria, já observou, com o fácil nome de azar.
O azar não é lógico. Isso é que o torna desesperador. A pessoa sai de casa, bem com a
sua consciência, com as faculdades mentais em perfeita ordem, os músculos, os nervos,
tudo bem governado, atravessa a rua como um cidadão correto, observando o sinal, e quando
chega do outro lado, apanha na cabeça um tijolo que um operário, inocente, deixou cair
do sétimo andar de uma construção.
Naturalmente, todo o mundo tem refletido sobre as razões secretas dessas coisas
inexplicáveis. E foi assim que, com o correr do tempo, se chegou à caracterização de
um certo número de fatos e objetos que servem de prenúncio ao azar: espelhos quebrados,
relógios parados, sal entornado na mesa, sapato emborcado, tesoura aberta, gato preto,
mariposas, sexta-feira dia treze, mês de agosto, gente canhota e estrábica, vestido
marrom, para só falar dos principais.
Penetrando mais no estudo de todas essas superstições, pessoas entendidas têm procurado
explicá-las pelas correlações existentes com as crenças do paganismo, estas por sua
vez baseadas no empirismo e na ignorância dos nossos antepassados, e assim por diante, o
que não impede que as pessoas ainda hoje se benzam, quando bocejam, para que o Demônio
não lhes entre pela boca; e não cruzem a mãos, quando se cumprimentam, para não
atrapalharem algum matrimônio, e não se deitem com os pés para a rua, e não façam
muitas outras coisas, só pelo medo das suas conseqüências ocultas.
Outras pessoas, igualmente entendidas, dão rumo diverso aos seus estudos, descobrem o
entrelaçamento das causas e efeitos universais, chegam até a afirmar que tudo quanto nos
acontece nesta encarnação é fruto remoto de encarnações anteriores, e respeitam o que
diz um provérbio oriental que o simples roçar da roupa de um passante, na nossa
roupa, é indício de alguma proximidade de vidas, em tempos imemoriais.
E há os que seguem o caminho dos astros, e com uma circunferência, umas retas, uns
planetas, uns cálculos, dizem e predizem os nossos destinos, com todas as suas
inesperadas trajetórias.
E há os que lêem nas linhas das mãos, e contam as nossas viagens, os nossos
padecimentos de fígado, o que vamos fazer daqui a vinte anos, e o minuto em que
empalidece a nossa estrela...
Está claro que creio em tudo isso. Eu justamente creio em tudo. Creio até no contrário
disso. A minha faculdade de crer é ilimitada. Não compreendendo por que as pessoas
crêem numas coisas e noutras não. Tudo é crivei. Principalmente o incrível. Não estou
fazendo paradoxo. A vida é que já é por si mesma paradoxal, desde que seja vista não
apenas pela superfície.
Ora, uma vez, todas as coisas começaram a correr contra mim. Fazendo a mais profunda e
leal introspecção, estou bem certa de que não merecia tanto. Se punha roupa branca,
chovia; se precisava ver a hora, o relógio estava parado; muitas coisas pequenas, assim e
outras maiores, já com intervenção humana, e que, por isso, não é necessário contar.
Então, considerando que tal concordância de acontecimentos desagradáveis devia ter uma
razão secreta, pus-me a procurá-la.
Ao contrário do que geralmente se faz, comecei por atribuir a mim mesma a razão dos meus
males. É certo que todos temos muitos defeitos. Mas nunca me dei ao luxo de ter tantos
que justificassem a conspiração que se fazia contra mim.
Admitida a minha inocência, passei ao exame das circunstâncias que por acaso estivessem
sob a minha responsabilidade. Nem espelho partido nem vestido marrom nem gato preto nem
número fatídico na porta.
E assim descendo de observação em observação, e consultando algum conhecido e
os nossos conhecidos sempre sabem essas coisas ocultas e se não nos ajudam com as suas
luzes é pela timidez em não acreditarem o momento propício passei a analisar o
meu nome.
Esqueci-me de dizer que estava disposta a todos os despojamentos. Se a culpa fosse de
algum mau sentimento, de alguma ação malvada, eu me castigaria energicamente. E até
para me estimular recordava o exemplo daquela senhora americana que arrancou um olho e
cortou a mão, convencida de que esses dois fragmentos do seu corpo estavam estragando a
sua alma.
Foi nessa ocasião que me explicaram o valor cabalístico das letras, e a razão por que
muitas pessoas mudam de nome, trocando aquele que lhes foi dado por outro em que haja uma
combinação de valores mais favorável aos seus destinos.
Todos os conhecimentos têm uma profunda sedução. Quem conseguisse saber tudo ficava
igual a Deus. Por isso é que muitos são de opinião que se saiba o menos possível, para
não se ter a mesma sorte de Eva, que logo no princípio do mundo estragou o Paraíso com
o pecado do saber.
Digo isto porque um tratado de biologia me atrai com a mesma força que um volume de
ciências ocultas, e os números e as letras me parecem tão organizados, tão sensíveis,
tão vivos, tão poderosos, enfim, como um animal, uma planta, um átomo.
Naturalmente, desmontei o meu nome, peça por peça, calculei, pesei, refleti, devo ter
chegado a alguma conclusão de que já não me lembro, e não tenho a impressão de que os
meus cálculos fossem assim desfavoráveis. Mas pelo sim, pelo não, como havia uma letra
disponível, achei melhor sacrificar essa letra.
Há os que sacrificam os filhos, os carneiros, as aves, e há os que sacrificam o seu
coração. Sacrifiquei o meu. Porque eu gostava de todas as minhas letras, fervorosamente.
Ter de cortar uma, não foi assim coisa tão fácil como as reformas ortográficas
ordenam. Uma letra é um signo, é uma coisa misteriosa que as gerações vêm carregando
consigo, modificando de longe em longe, por mão inexperiente, por súbito esquecimento,
por ignorância de algum escriba emprestado.
Deu-me um trabalho muito grande, ficar sem essa letra. Quando olhava para o meu nome sem
ela, sentia como se me faltasse um pedaço, como se estivesse realmente mutilada, sem a
mão ousem o olho. Consolava a letra perdida. Escrevia-a sozinha, do lado, sorria-lhe,
contava-lhe coisas, para distraí-la. Tudo era muito infantil e muito triste. A pobrezinha
ficava para trás, e dava-me saudade. Recapitulando estas coisas, sinto-me entristecer, e
preciso recobrar a minha força de vontade para não alterar outra vez o sobrenome.
Afinal, como último trabalho convincente, estabelecemos este acordo. A letra não ficaria
perdida: seria usada nos documentos oficiais, nesses lugares respeitáveis em que a firma
é a garantia da nossa pessoa recebendo e pagando os lugares que nos vemos que merecem a
consagração e a estima unânimes dos nossos colegas humanos.
Quanto às coisas literárias, essas efêmeras coisas pelas quais vamos morrendo dia a
dia, não são assim de tal modo graves que precisem da firma autêntica, daquela firma
por que os juízes nos podem perguntar um dia, brandindo um papel pavoroso e fulminante:
"Dize, bandido, foste tu que assinaste este documento?" Não, as coisas
literárias não chegam a esse ponto. O mais que nos pode acontecer é tirarem o nome que
escrevemos no fim e substituírem-no por outro, sem juiz, sem fulminação, sem defesa...
Isto posto, a letra abandonada e eu nos abraçamos ternamente, e nos separamos. Como era
uma letra suave, terá querido dizer com o seu romantismo: "Quero apenas que sejas
menos infeliz. Acompanhei-te durante tanto tempo! Tiveste tanta dificuldade em aprender a
escrever-me... Pensavas com inocência no mistério das letras dobradas... Sentias
orgulho, na escola, por essa letra dobrada no nome... Mas talvez eu esteja pesando demais
na tua vida. Não fiques triste. Adeus."
Fiquei muito triste. Faltava-me a letra. Já não era como se me faltasse um pedaço de
mim, mas, um parente, um amigo extraordinário.
A minha vida, porém, mudou tanto que, por mais saudade que me venha dessa letra perdida,
não me animo a fazê-la voltar.
E está feita a confissão. Como se vê, uma história longa, que não se pode repetir a
cada instante. Principalmente porque é uma história íntima, e ninguém deve cortar as
letras do seu nome só por ter visto outras pessoas fazê-lo. E fica explicado para sempre
que assino deste modo por motivos sobrenaturais, fantásticos, como quiserem, mas não
pela reforma ortográfica, aliás muito cautelosa com os nomes próprios, respeitando-os
tanto quanto me parece deverem ser respeitados, principalmente pelos mistérios que dentro
deles vão navegando.
(Rio de Janeiro, A MANHÃ, 27 de
dezembro de 1944.)
Texto extraído do livro "Cecília Meireles Obra em prosa Volume
1", Editora Nova Fronteira Rio de Janeiro, 1998, pág. 105.
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